Tempos de guerra escritos pela mão de um pastor


Foto: Luís Neves
Tinha 22 anos quando entrou no paquete "Vera Cruz" rumo a Angola. Nunca entendeu a lógica do conflito que lhe roubou três anos da sua juventude. Dos momentos de solidão, longe de tudo e de todos, António Monteiro contou os segredos impossíveis de suportar num diário de guerra que guarda religiosamente como um tesouro. Através do refúgio de uma escrita simples e modesta, o "praça" - hoje pastor em Tentúgal - deixou um testemunho sereno e factual de uma luta sem razão.

"(...) Hoje mesmo, dia 28 de Maio de 1967, dia em que eu faço 25 meses de comissão, cá vou entrar para o Vera Cruz, nove dias de água, se Deus me der saúde". Chegavam assim ao fim três anos de sofrimento no Ultramar. O diário escrito por António Faria Monteiro relata as aventuras e desventuras de um soldado em Angola: as emboscadas, os ataques ou as festas que animavam o abrigo encontrado nas casernas.
É talvez um dos poucos - senão único - registo imortalizado por um "praça" quase iletrado. Mas a simplicidade de uma escrita inocente e objectiva deixa a nu a realidade de um universo para muitos indecifrável.
"Quando lá cheguei, só víamos céu e mar. Não tinha mais nada que fazer e pedi ao capitão se podia escrever. Saíamos do acampamento para fazer emboscadas e quando vinha, escrevia", explica o pastor. "Não escrevia tudo, mas as coisas mais importantes para eu recordar mais tarde". O diário (ou livro, como o autor lhe chama) relata cenas do quotidiano de um grupo de combatentes na Guerra Colonial. Está lá tudo: as datas, os nomes, a camaradagem, a véspera de um Natal passado no meio do mato.
"Pediam-me para eu vender a minha escrita, mas eu não vendi por dinheiro nenhum", diz lançando um olhar furtivo sobre o diário.
António nunca vacilou face ao apelo de uma guerra desconhecida. Foi em 1965, há precisamente 38 anos, que foi chamado para prestar serviço nas ex-colónias. Nunca percebeu muito bem ao que ia.
"Nós íamos para o mato para matar a sangue frio. Para matar uma pessoa que não nos fez nada. Não tínhamos consciência de porque é que lutávamos. E não tínhamos medo de morrer".
 

Eram jovens soldados, feitos homens em Angola, Guiné e Moçambique, e mergulhavam na mata verde, cara a cara com o perigo, acreditando que a paz renasceria sobre os túmulos dos que sucumbiam às feridas. Se os 13 anos de guerra significaram a morte para mais de oito mil portugueses, António teve a sorte de não ver nenhum colega falecer.
"Os "turras" estavam nos morros e matavam muita malta assim. Na minha companhia não morreu ninguém. Eu também não matei ninguém, mas vi muitos morrerem".

Quase quatro décadas depois, quando na quietude da vida rural, vai para o campo com as suas ovelhas, António recorda-se bem de quando estava debaixo de fogo. A memória não o trai e ainda se lembra "como se tivesse sido ontem" das coisas que passou. Essa terá sido, talvez, a luta mais difícil de todas, que nenhum dos soldados que esteve em África conseguiu vencer.
Hoje, todas as memórias estão perpetuadas num diário de guerra escrito em jeito de desabafo. O diário que acompanhou um "praça" durante três anos.
António Monteiro - já a passar a barreira dos 60 - confessa ter saudades daqueles tempos. E dos amigos. Dessa época recorda com maior alegria o dia do regresso, um momento "de muita satisfação".
"Enfim, tudo se passou. À minha chegada me fizeram uma grande festa, foguetes, baile. Foi logo nesse baile que eu dancei com a São da Vila Verde, que espero de ela ser a minha mulher... Tudo isto passado no tempo do Ultramar. Fim. 15-6-67"

Termina assim o testemunho humilde do antigo soldado, registado no seu diário de guerra. Um testemunho avivado pelas memórias partilhadas, tantas vezes, com a mulher que escolheu para passar o resto dos dias: a São da Vila Verde.

Reportagem publicada no Diário As Beiras em 2003

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