REPORTAGEM (2009) - Ainda há anjos

Foto: Gonçalo Manuel Martins


São pessoas como nós. Na escuridão que adormece a noite, enfrentam o frio para ajudar os sem-abrigo. O DIÁRIO AS BEIRAS acompanhou os voluntários da Câmara de Coimbra.

 
21H45. Termómetros a bater nos três graus centígrados. No quartel da Polícia Municipal ultimam-se os preparativos para mais uma viagem. Nas próximas horas, Filipa Amaral (psicóloga), Cândido Lopes (voluntário da autarquia) e Bruno Serra (bombeiro sapador, que pela primeira vez transporta a equipa) vão distribuir alimentos, café quente e agasalhos pelos sem-abrigo. Não são muitos, é certo, mas os suficientes para deixar um nó na garganta.

As luzes de Natal ainda brilham, mas escondem a solidão de muitos que pernoitam pelas ruas da cidade. José é presença habitual na área de máquinas automáticas da Caixa Geral de Depósitos. Está deitado num pedaço de cartão. Os voluntários entram com o objectivo de o convencer a pernoitar no quartel do Bombeiros Sapadores de Coimbra. 
A conversa é longa. Pouco importa revelar o diálogo que se estabelece. Conta, sim, a confiança e a abertura com que os voluntários são recebidos. José, homem de palavras rebuscadas e de olhar atento, recusa qualquer ajuda. Já na carrinha dos bombeiros, Bruno Serra questiona: “Ele disse que trabalha. É verdade?”. Filipa responde: “Passa os dias a ler na Casa da Cultura de Coimbra”. Faz-se silêncio.

22H40. Não se vê vivalma nas Químicas. A equipa já sabe o caminho que deve seguir. Num vão de escada, um quarto improvisado. O colchão está vazio. Não importa. Alguns metros adiante, estão outros dois sem-abrigo. Aceitam café, mas dispensam os cobertores e o alojamento temporário no quartel dos bombeiros. Entre um aglomerado de trapos, Miguel destapa a cabeça e lança um sorriso. Tem 44 anos. 
Está bem informado sobre a actualidade - “a Câmara de Lisboa tem uma tenda para os sem-abrigo. O António Costa anda a ver se não deixa lá entrar o Santana Lopes”. Novo sorriso. Se o destino lhe roubou outras coisas, não lhe levou a simpatia. “Como é que veio aqui parar?”, perguntamos. “A vida é que sabe”. Mesmo assim, não se queixa. “
É feliz?”. A resposta é tão espontânea como o sorriso que tem cravado no rosto: “Por acaso até sou. Gosto de mim. Gosto do mundo”. Enquanto isto, um jovem aproxima-se e pede um café quente. Há dois anos e meio que tinha deixado esta vida. No entanto, regressou. Houve coisas que não mudaram. A presença amiga do voluntário Cândido Lopes é disso exemplo.

É hora de seguir caminho. Pela primeira vez nestas lides, o bombeiro Bruno Serra deixa-se levar pelo espírito solidário. Fala com os sem-abrigo, estende-lhes a mão, pergunta o que precisam. E fica-se com a certeza que voltará, numa outra madrugada, mesmo que não esteja de serviço.

Próxima paragem: Avenida Fernão de Magalhães. Mal avistam a carrinha dos Bombeiros, três homens correm enquanto atravessam a estrada. Já sabem ao que vão. Têm fome e frio. A equipa conhece dois deles. O outro - um jovem de 29 anos - aceita tudo o que lhe dão. É o primeiro a aceitar alojamento nos sapadores. O frio tinha-lhe roubado horas de sono na noite anterior. “Só dormi uma hora e meia. Aceito uma cama”. João já tinha andado nas ruas. Foi toxicodependente, esteve três anos e meio “limpo” - altura em que conseguiu ter uma profissão e progredir na carreira -, mas voltou a cair nas malhas da droga. “Parece que isto é uma doença que me irá perseguir a vida inteira”. Naquele período em que tudo parecia “encarreirar-se” foi, ele próprio, voluntário. “Vi coisas terríveis. E agora voltei...” Os três homens foram os primeiros a aceitar o alojamento temporário. Nessa noite (de quarta para quinta), as sete camas disponíveis no quartel dos Sapadores foram todas ocupadas.

Quase meia-noite nos ponteiros do relógio. Quando nos despedimos, depois de um “obrigado”, fica o vazio. Porque - apesar da agrura dos dias - há vidas (bem) piores do que as nossas. Porque há pessoas anónimas que deixam a família por algumas horas para distribuírem alimento, aconchego e carinho. Mas há palavras que valem quase tanto como um agasalho. Afinal, os anjos existem...

(Nesta reportagem, por uma questão de confidencialidade, os nomes dos sem-abrigo são fictícios)

Reportagem publicada no Diário As Beiras em Janeiro de 2009

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