Um sábio “mimado” que rejeita viver da reforma do Estado
Créditos: Carlos Jorge Monteiro |
À hora
marcada, nem vivalma. Junto a um restaurante abandonado no Bolão, o silêncio é
apenas interrompido pelo barulho dos carros que passam na Estrada na Cidreira.
O tempo
passa e nada. Mas, à derradeira tentativa, alguém grita: “Faça o favor, minha
senhora!”. À primeira vista não se percebe bem de onde surge aquela figura
franzina. Sai de uma casa completamente tomada por heras – existe ali uma casa?
– cabelo desgrenhado, ainda descalço, a ajeitar a gravata. O homem sorri, pede
desculpa pelo atraso, e começa a falar. O bigode branco e farto, a tapar-lhe os
lábios, não impede que as palavras lhe saiam em catadupa, num português
escorreito e elaborado, como se estivesse a proferir uma palestra.
Valdemar
Caldeira é um sábio que preferiu renunciar às reformas do Estado porque não
consegue aceitar “a hipocrisia da persuasão, a lógica do impositivo e o uso do
autoritarismo”. Vive, por isso, das heranças deixadas pelos pais.
“Não vivo
com especiais dificuldades. Pode ser que seja um bocado de orgulho, mas eu
desperdiço oportunidades de rentabilização”, diz, antes de começar a desfiar
memórias antigas.
Este homem –
não é raro vê-lo, em passo apressado, entre o Bolão e Coimbra – vive com o
mínimo possível, sozinho, mas rejeita qualquer ajuda de terceiros. Ainda assim,
quem o conhece diz que é um benemérito que sempre preferiu ajudar quem tinha
menos que ele. Exemplo disso são as explicações de matemática que deu a quem
lhe pedia, sem cobrar nada. Mas sobre isso Valdemar Caldeira pouco ou nada diz.
Passos
apressados
para ir à
missa
Fala, sim,
do Serviço de Nefrologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde foi
voluntário durante 25 anos. “Ia lá duas vezes pro semana. Deixei de ir há dois
anos”.
Agora, os
passos apressados que dá vão em direção à Sé Nova, onde vai “com muita
regularidade para assistir à missa”.
“Quando me
formei, a oportunidade que tive de entrar na docência universitária foi à saída
de uma missa por um homem que tinha sido meu professor de Física e que me tinha
comtemplado com uma nota de 15”, conta. “Agora, quando me veem na rua, ou vou à
missa ou vou comprar pão e mercearia”, acrescenta.
Professor na
Universidade
“mas sem
vocação”
A conversa
não é fácil. Valdemar Caldeira divaga, não responde às perguntas, evita falar
de si. Diz, no entanto, que tem 73 anos – “feitos a 6 de setembro”. Foi filho
único – condição que o marcou toda a avida - de um comerciante de gado e de uma
doméstica, naturais da Carapinheira. Vieram para Coimbra ainda Valdemar era
“infante”.
“Os meus
pais compraram o talho dos Olivais como trespasse, assim como o meu avo tinha.
Eu fui para a Escola Primária dos Olivais”.
O curso do
liceu fê-lo no Colégio Luís de Camões. Desse tempo não se esquece do homem que
o marcou “muito objetivamente, em termos de modelação, de reverência, um homem
de auto domínio, contido, e que era um ídolo da rapaziada do colégio”. Alberto
Luís Gomes, o futebolista referência da Académica dava aulas de português no
colégio. “Entrei em 52 e ele tinha sido uma das referências da equipa da
Académica e tinha ganho a Taça de Portugal em 39”, recorda. Seria impossível
esquecer: confessa ser “um doente” pala Briosa, evitando mesmo ir aos jogos com
receio de sofrer uma “síncope cardíaca”.
Em 1959,
Valdemar Caldeira entrou na Faculdade de Ciências no curso de Engenharia
Química Industrial. “Demorei cinco anos para fazer um plano de curso de três.
Saí daqui em outubro de 64 e fui para a Faculdade de Engenharia do Porto, onde
conclui o curso em três anos” lembra.
Recorda-se,
a este propósito, da reação do pai quando, ao terminar o curso liceal informou
o pai que queria ir para o Instituto Superior de Agronomia. “A reação do pai sé
é expressa numa palavra, rija do nosso vocabulário: tinir, amor detentor, de
posse. Disse-me: “tu ainda és verde demais para ir já para Lisboa.
Matriculas-te num curso de engenharia”. Foi o que fez. Mas nunca disse aos pais
que se tinha matriculado num curso de engenharia química. Só o fez no dia em
que precisou de licença da família para ser hospedado no Porto, onde iria
frequentar o Instituto de Engenharia do Porto.
Terminou o
curso, e ainda chegou a “estar lançado para ser assistente”. “Dei aulas teórico
práticas em 1969. Mas depois virei as costas àquilo, porque aquilo não era a
minha inclinação e eu sabia”, constata.
Nunca teve
o “assomo
casamenteiro”
Viveu com os
pais até aos 60 anos, enquanto ia dando explicações. É a eles que a memória
recorre, vezes sem conta, enquanto discursa.
“Não casei.
Era filho único. O meu pai foi um homem que me deu uma única palmada. Mas a
quem eu agradeço, porque não era preciso dizer-me mais nada. Eu sabia que a
coisa estava perto de extravasar quando ele abria os olhos e nada me dizia além
disto: “ouve lá: eu não sei se estás a ser Valdemar ou vale da terra”. Quando
ele dizia isto eu pensava: daqui não ultrapassas, porque se ultrapassas,
levas”, diz, os olhos azuis a sorrir.
E depois –
diz – “fiquei quase sempre debaixo das saias da mamã”.
O pai
faleceu em 95 e a mãe, três anos depois. Da relação entre os dois recorda as
alturas em que “, de burro, andavam sem se falar 10, 12 dias. Mas mesmo tendo
esses momentos em que andavam às avessas, penso que não havia dia nenhum que
não dessem o “bom dia” um ao outro. Dormiam ambos no mesmo leito, mas às vezes
a coisa azedava”.
Nunca casou.
Não diz porquê, continua a fugir à pergunta. “O que se passa é que fui filho
único. Temos as influências que temos – a pessoa que eu mais prezei a seguir à
minha mãe, desde sempre, foi a minha avó materna: Maria de Nazaré Correia da
Silva, o mesmo nome da minha mãe”. E continua: “eu tinha sensibilidade, era um
menino único, mimado. E, essa é talvez uma das razões porque eu não terei tido
o assomo casamenteiro: ter sido um menino apaparicado. Devo à minha avó materna
momentos de afeto e à minha mãe também - embora a minha mãe não se coibisse de,
quando fosse preciso, dar-me umas palmadas”.
Usa fato e
gravata todos dias: influência da família, com posses, e que sempre fez questão
de zelar e cuidar do “menino”. Mas deve-o, também, à “senhora Dona Perpétua
Monteiro”, costureira e mulher de referência que era a madrinha de batismo do
pai.
A família
está hoje tão presente como outrora. Se sobrevive é graças aos bens deixados
pelos pais. De resto, é despojado de bens, vive numa casa pobre – num canto da
cozinha, dentro de uma malga de alumínio, já estão escolhidas as couves para o
jantar – não saberá, sequer, que já foi criada uma página no facebook em sua
homenagem.
Valdemar
Caldeira não será hoje tão apaparicado como foi enquanto os pais eram vivos.
Mas é livre e os passos que dá, numa marcha apressada, escondem tantas
memórias. Memórias de um tempo cheio de afeto.
| Patrícia Cruz Almeida
Hoje o dia da tristeza:
ResponderEliminarFaleceu Valdemar Caldeira
Valdemar Caldeira, figura conhecida da cidade de Coimbra, por caminhar sempre a pé e pelos longos cabelos e barbas brancas, faleceu esta tarde.
(Diário de Coimbra)https://www.facebook.com/diariocoimbra/photos/rpp.108461985899089/2098953616849906/?type=3&theater