O corpo como espectáculo


Foto: Gonçalo Manuel Martins

Todas as semanas, os gestos são ensaiados na Escola Secundária Jaime Cortesão. Michel Kotenkoff, da Cooperativa Mandacaru, revela os segredos da arte circense. Ali, superam-se os medos e ganha-se liberdade.

A ALUNA QUE VEIO DO BRASILAos 23 anos teve que optar: entrar para o mundo mágico da escola de circo ou escolher a bolsa que tinha ganho na área da sociologia. Se o coração mandasse não teria pensado duas vezes. Mas a razão – essa “coisa chata” que às vezes se emaranha no fio dos sonhos – prevaleceu. Cora Hagino, natural do Brasil, é uma apaixonada pelas artes circenses. Quando era miúda, tinha medo das alturas mas decidiu ultrapassá-lo e iniciou-se no circo aéreo. Chegou a fazer provas para ingressar na escola nacional de Circo do Rio de Janeiro e passou. “Tive que optar por uma carreira mais estável”. A sociologia trouxe-a a Coimbra, onde hoje, com 25 anos, prepara a tese de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.Durante alguns meses procurou em Portugal instituições que promovessem formação em artes circenses. “Só encontrava em Lisboa e ficaria muito dispendioso deslocar-me tantos quilómetros”. Um dia, soube do workshop que decorre na escola Jaime Cortesão. Desta vez não pensou duas vezes.O PROFESSOR FRANCÊSMichel Kotenkoff é certificado pela Federação Francesa das escolas de circo. Já tinha estado em Coimbra, no âmbito de projectos de voluntariado. Trabalhou na Comunidade Juvenil S. Francisco de Assis (Eiras) e no Bairro do Ingote, concretamente do Projecto Trampolim, que visa a dinamização de actividades nos tempos livres de jovens desfavorecidos. Mas quis voltar para França para se formar no Big Bang Circus, em Rénne e regressar à cidade do Mondego. Hoje, com 30 anos, é um dos dinamizadores da Cooperativa Mandacaru. A entidade visa "a realização de projectos de intervenção social, cultural e artística, visando a promoção do acesso à educação, formação e integração profissional de grupos socialmente desfavorecidos”. E visa, também, "prestar serviços que visam a inclusão social, o incentivo à mobilidade e a promoção da cidadania participativa."Durante os últimos anos, a cooperativa andou a divulgar as artes circenses com aulas pontuais em várias zonas da cidade – bairros sociais, centros de estudo, actividades de tempos livres, escolas secundárias. Desta vez, a Mandacaru decidiu “dar um salto em frente” e iniciou as aulas regulares de artes circenses. Foi uma aposta ganha.

A AULA EM COIMBRATrapézio, malabares, fitas... Um mundo de cores, alegria e movimento onde se reúnem semanalmente adolescentes e jovens e adultos. O silêncio do ginásio da Escola Secundária Jaime Cortesão é interrompido pela música. Mas as palavras de Michel falam mais alto e ecoam pela sala. Primeiro, o aquecimento. Depois, a coragem. Coragem de pedalar pela primeira vez sobre um monociclo, de ousar subir alguns metros de corda, de rodopiar no trapézio ou de percorrer o pavilhão em antas. Ali, é o corpo como espectáculo, onde são recriados gestos (quase) impossíveis para muitos, mas que se são, também, alegria e liberdade…
Aprende-se a relacionar-se com os outros, a ultrapassar limites, a trabalhar em grupo”. E depois, é uma forma de estimular a criatividade, a paciência, a descoberta do corpo, a confiança em si próprio e no outro e, claro, a auto-estima”. Enquanto Michel fala, as alunas – são todas mulheres – percorrem livremente o pavilhão. Têm carta-branca para utilizar os objectos que o professor levou para a aula. Manuseiam massas, bolas e “diablos” em gestos de malabarismo. No fundo, os próprios alunos são professores deles mesmos.
E, também por isso – refere Michel Kotenkoff – “circo pode ser uma escola de vida”, diz. Na aula – aberta a todos os que queiram participar - convergem energias de auto-superação, elevação, coragem ou equilíbrio. Sejam, então, bem-vindos ao maior espectáculo do mundo.


Reportagem publicada no Diário As Beiras em Junho de 2010

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