CRÓNICA: A todas as mulheres

DR


O tempo muda tudo, sobretudo aquilo que nunca quisemos mudar nas nossas vidas. No início tudo era diferente. Foste entrando devagarinho, passo lento, para não me assustares. Mas conseguiste pressentir a minha sede de paixão e partiste à aventura. O teu corpo tinha tanta liberdade que pensavas conseguir voar com as minhas asas. Deixei, confesso, e durante anos, as minhas costas foram ficando curvadas, os meus olhos negros, o meu rosto marcado com a raiva que trazias nas mãos, o coração carregado de dor. Dizem que as mulheres perdoam tudo quando amam um homem. Mas podia aquilo ser amor? Fazes ideia de quantas vezes esbocei um sorriso aos nossos filhos para fingir que estava tudo bem? As marcas estavam cá e eles percebiam a mágoa que me deixavas em cada desavença. Ainda tentei medir o equilíbrio daquilo que sentia. Reprimi tudo como se eu própria fosse um objecto qualquer que não sente nada. E afinal, bastou um momento para me esquecer de novo e tu ataste-me com o teu corpo cobarde. 

Um dia tive coragem de mudar. Aquele era o momento mais errado da nossa vida. E, quando ainda pensavas que serias capaz de voar com as minhas asas, fui eu quem partiu como uma andorinha pela manhã. Levei comigo os nossos filhos. No início, o teu cheiro entranhado no meu corpo era tão insuportável que eu desfalecia na tentativa de te matar. Depois de tantos anos, e após ter recuperado o tempo perdido, sei que a vida vence quase sempre o amor.

Hoje quero dedicar os meus dias a tantos outros gritos que permanecem silenciados pela falta de coragem, pelo medo do que as pessoas possam pensar, com receio do futuro ou das represálias.

Hoje é também dia de dar voz às mulheres que são vítimas dos regimes políticos que se baseiam em fanatismos religiosos, contrários a tudo o que possa representar a liberdade. É dia de ter a consciência de que morrem diariamente mais mulheres e crianças do sexo feminino devido à violência e à discriminação sexual, do que por qualquer outro tipo de violação dos direitos humanos. Que há mulheres que são queimadas vivas, apedrejadas até à morte só pelo “pecado” de terem amado.

Sim, eu sei que subjuguei a minha dignidade, calada com as bofetadas e os pontapés que me davas sem motivo. Mas nesta história – e em tantas como a minha – não fui eu o sexo fraco... 

Crónica publicada no Diário As Beiras a 8 de Março de 2006

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