Memória

DR
 
 
Guardo–te na memória desde os meus 12 anos. Sentada na varanda, junto ao postigo da casa dos meus pais. A tristeza tinha–te vestido de preto, muito antes de eu ter nascido. Talvez por isso recorde ainda hoje o teu sorriso triste mas sempre tão meigo quando falavas comigo. Permanecias as tardes sentada junto ao jardim, e ali estavas, durante horas, escondendo entre as mãos marcadas pelo tempo, o terço que alguém te oferecera. Nunca entendi o significado das tuas orações. A fé que trazias contigo era uma equação impossível para uma criança como eu. Mas quando eu chegava, interrompias as tuas conversas com Deus, falavas–me de ti ou do avô, que havia partido muitos anos antes. E das minhas boas lembranças de infância, guardo no “baú dos tesouros” as palavras que ias desfiando à medida que o sol se punha.
Um dia, a tua luz apagou–se. E eu senti falta. Senti falta de regressar da escola e ver–te sentada junto ao postigo da casa, rezando para o mesmo Deus que te levara de mim. Para sempre. Senti saudades do teu rosto franzino, do teu pequeno porte carregado de negro, do lenço preto que quase te escondia o sorriso triste e sincero.
No Dia de Todos os Santos não te fui ver. Peço desculpa, mas nunca gostei muito desse dia. Para te recordar não preciso de um feriado marcado no calendário.
Hoje, mais uma vez, os cemitérios encheram–se de flores, quase que numa competição desenfreada para ver quem fez o arranjo mais bonito. Enquanto a eucaristia não começa, vai–se falando da “Maria do Fernando” que decidiu emigrar para a França, ou da “filha da Amélia” que engravidou antes do casamento. A hipocrisia é tanta nesse dia, avó... Por isso, sempre que eu ia ao cemitério acender–te uma vela, atravessava–se um nó na minha garganta. Ao fim e ao cabo, a vida é mesmo assim. Cada vez mais, as pessoas querem ostentar aos outros a beleza que não têm. Mas basta um olhar mais atento para ver que, por dentro, tudo é muito diferente. Afinal, aquele arranjo mais bonito, foi comprado à pressa só para não parecer mal. Claro que há excepções...
Hoje não fui ao cemitério porque não pude. Não te levei crisântemos, nem pedi a ninguém para te levar um “bouquet”. Desculpa e pede desculpa ao teu Deus por mim. Mas a minha saudade, ao contrário de muitas, não se traduz em flores. O que conta, ainda, é o amor e a dor de ter sofrido com a tua ausência.

Comentários

  1. também sou daquelas pessoas que não aprecia este ritual que nem sequer deveria ser praticado no dia de hoje, mas no de amanhã que é o dos Fiéis Defundos (mais uma incoerência por conta-do-dar-mais-jeito-por-ser-feriado)....

    mas também tenho recordado nestes dias e com alguma intensidade aqueles que já partiram da sua dimensão física e vivem no aconchego do meu coração...

    e, tal como tu, Patrícia, também a minha avó (Glória de seu nome) é alguém que me faz muita falta nos meus dias...

    obrigada pelo teu artigo tão sentido. Beijinho! Ana

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Um sábio “mimado” que rejeita viver da reforma do Estado

GOMES CANOTILHO: “Algumas dimensões simbólicas são esmagadoras para a Universidade de Coimbra”